domingo, 7 de agosto de 2011

O que faz de um tango um tango


A Isa não resistiu e tirou a Maizé pra dançar um tango, depois que ela leu o texto, mesmo sem o som de La Comparsita, que estava só na nossa imaginação...




Texto apresentado pela Maizé, no I Sarau, no Café Santa Sophia, no dia 03 de agosto de 2011.




O que faz de um tango um tango

Mario Sabino

O que faz de um tango um tango não são as letras lamuriosas.
O que faz de um tango um tango não é o Gardel morto que canta cada vez melhor.
O que faz de um tango um tango não são os passos ensaiados da tradição.
O que faz de um tango um tango não é a orquestra com ar cansado de quem tudo já viu.
O que faz de um tango um tango não são as pernas altas da dançarina, calçadas em meias pretas.
Não é seu cabelo preso ora com flor, ora com fita.
O que faz de um tango um tango não é o chapéu antigo do dançarino.
Não são os seus sapatos lustrosos. Não é o seu terno de risca-de-giz.
Não é o seu lenço dobrado no bolso da lapela.
O que faz de um tango um tango não é Buenos Aires.
Não é qualquer geografia.
O tango não está no mundo das latitudes, das longitudes, das cartografias, dos guias turísticos.

O que faz de um tango um tango é a atração e a repulsa.
É a tentação e o medo. É o afeto e a raiva.
O que faz de um tango um tango é ela seguindo na mesma direção dele, e ele seguindo na mesma direção dela, até que um tenta fugir e o outro tenta impedir, numa alternância de fugas que se querem e não se querem.
O que faz de um tango um tango é a dor de um e de outro transformada em coreografia simétrica.
O que faz de um tango um tango é o encontro que se desencontra e se reencontra.
O que faz de um tango um tango são os volteios do amor dos poemas clássicos, das canções dos trovadores.
Os volteios do amor que bebe no prazer e na fúria.
Os volteios do amor que se amorna e logo torna a incandescer.
O que faz de um tango um tango é o amor que, na iminência de um final que se prenuncia infeliz, acha o final feliz.
Porque nunca em um tango que é tango dois dançarinos terminam separados, descolados, deslocados.

O que faz de um tango um tango sou eu dentro de você na carne e você dentro de mim na alma, depois do último acorde, depois do último aplauso, depois da última lágrima, depois do último gozo.
O que faz de um tango um tango é a música que se quer silêncio. O silêncio dos amantes.


Extraído de FSP, 19/09/2010 Ilustríssima, p.8


Mário Sabino nasceu em 1962 e iniciou sua carreira jornalística na FSP, em 1984. Hoje é redator-chefe da revista Veja. Estreou na literatura em 1996, com o romance “O dia em que matei meu pai”, publicado tb em outros dez países.
Em 2005, lançou seu segundo livro, “O antinarciso”, coletânea de contos que ganhou o prêmio Clarice Lispector, concedido pela Biblioteca Nacional.
Seu terceiro livro, “A Boca da Verdade”, também de narrativas curtas, foi editado em 2009.

http://mariosabino.com.br/page/2/
Consulta em 28/07/2011

O caderno dominical Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, publicou na seção “Imaginação, prosa, poesia e tradução” de 19/09/10 o conto “O que faz de um tango um tango” de Mario Sabino. Este conto foi publicado originalmente, em inglês, na revista literária britânica “Drawbridge”, com o título “Tender anger soothed”.

3 comentários:

  1. Graça, você é demais! É importante preservarmos os registros. Em algum momento, em algum lugar, em algum canto da nossa memória estas lembranças estarão guardadas...

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  2. Oi Maizé, a idéia brilhante de guardar tudo foi da Belti! Aí, a Isa sugeriu que a gente fizesse um blog, para sermos mais rápidas e eficientes e pra todo mundo poder olhar de uma vez só. Foi só a Lucilea chegar, imperativa, e dizer: faça que eu fiz... bjs

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  3. E fez muito bem feito. Parabéns, amiga!

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